Exu tranca rede
http://migre.me/oKPhp
gif do SO FreeBSD, (nothing to do with this article)
OBS: A vers’o original deste texto saiu na revista Macmania. Autorizado
pelos autores (rimou, essa) Tom B e Alexandre Boechat
Resolvi deixar esse texto aqui e um link para a vers’o inicial,
que era para Macintosh EXU TRANCA REDE VERSAO ORIGINAL:
https://sites.google.com/site/barataeletricafanzine/Home/etr2-html
Nossa! Que e isso? Voce andou fucando aqui, Saci? Vem ca, menino!
O boy atravessa o escritorio devagar. Tem uma perna so, sequela de sua
curta carreira como surfista de trem, e toma cuidado pra nao enroscar a
muleta nas dezenas de fios que pendem detras dos computadores instalados em cada mesa.
- O que foi? Exu o que? O que voce andou aprontando por aqui, Rose?
- Eu? Nada! Achei que tivesse sido voce.
Na tela, em vez das linhas e colunas da planilha de gastos, estranhos
sinais vermelhos sobre fundo preto. Um tridente de duas pontas, cruzes, o escambau. Coisa de macumbeiro? Embaixo, letras tambem vermelhas
confirmando: "ETR - Exu Tranca Rede". Rosangela, secretaria bilingue, nao
fazia ideia do que era aquilo. Saci tambem nem tinha como saber, mas o
virus Exu Tranca Rede tinha, naqula tarde, paralisado quase toda a rede da Grande Sao Paulo. Devido a regulamentacao governamental e a taxacao
excessiva, a rede paulistana era muito precaria, quase toda feita de
ligacoes clandestinas. Partindo de algum ponto da Zona Leste, provavelmente
da Mooca, o virus havia se aproveitado disto para alastrar-se, travando sistemas e destruindo dados. A noticia so apareceria na TV de noite, ai era tarde demais.
- Ah, Rose, isso deve ser zoeira do pessoal da tecnica. Olha, restarta
isso dai, pressiona F8, seleciona Safe Mode e ve no que da. Eu nao posso
ficar por aqui. Ja ta na minha hora, to indo nessa.
Saci fugiu rapidinho pro elevador, deixando Rosangela atonita, olhando
para aquilo. Era a maior roubada ficar resolvendo os pepinos da Rose, ela parecia que nunca tava entendendo direito. Certa vez, tinha apagado um hard disk inteiro tentando ejetar o CD interativo do Fabio Junior. Embora em
menor grau, o pessoal do escritorio era todo meio tapado nesse aspecto.
Mesmo o pessoal da tecnica sabia so comprar e instalar pacotes prontos.
Quando dava uma zica que nao tava prevista no manual, era um
deus-nos-acuda. Saci sempre conseguia dar conta do recado. A computacao
tinha virado uma coisa totalmente fechada, hermetica. Ninguem mais
programava, tava tudo pronto. So a camada mais pobre da populacao,
pilotando maquinas que eram verdadeiros Frankensteins, tinha jogo de
cintura. Saci nao era excecao. O seu velho Dual Pentium MMX 200, todo
detonado, ainda rodava uma copia do Windows 2001; ele tinha que fazer verdadeiras magicas pra manter aquele troco no ar. O novo secretario de seguranca ja havia comentado nas paginas amarelas da Veja: "Os ultimos
hackers sao a baianada". E era por isso que as empresas ainda contratavam
boys. Ninguem mais precisava ir ao banco, nem levar documentos de um lado
prara o outro, e claro. Mas, quando a porca torcia o rabo, so um office-boy para resolver.
- Ai, Saci! Ai! Corre aqui!
- Calma, Damasio. O que aconteceu?
- Eu tava fazendo uma fezinha aqui no TeleBicho que nem voce ensinou
quando apareceu uma coisa do demo! Cruz-credo!
Damasio era o porteiro do edificio onde Saci trabalhava. Na sua mesinha,
no saguao, tinha um terminalzinho onde ele fazia o controle dos visitantes.
Era evangelico, mas nunca tinha se interessado em perguntar ao pastor se
Jogo do Bicho era pecado. Pelo sim, pelo nao, todo dia acessava a home page clandestina do TeleBicho (
http://www.castor.bicho.com) pra ver se dava
alguma coisa. Agora, diante daquele sinal demoniaco, suava frio. Tinha
certeza que era o capeta vindo a Terra para puni-lo. Numa mao segurava a Biblia; na outra, o manual. Saci ficou chateado. O pessoal da tecnica
exagerou. Aquilo era sacanagem.
- Que capeta, que nada, Damasio. Isso dai e zoeira do pessoal la de cima.
- De cima nada, menino! E de baixo! Isso dai e sinais do inferno! Ai, meu Deus! Eu sabia que eu tinha que gastar menos em vicios e dar o dinheiro pra Jesus, que nem o pastou falou!
- Nao, nao e nada disso. Pra fazer o capeta sumir faz que nem eu ensinei:
Iniciar, desligar, reiniciar o computador. Isso. Agora, da F8 rapidinho e
entra em Safe Mode. Tenho que ir, mas amanha dou uma olhada com calma pra
ver esse seu capeta.
Antes que alguem mais aparecesse com aquela chateacao, Saci saiu pela
porta de vidro. O predio onde trabalhava ficava na Berrini. Na virada do
ano 2000, os paulistanos tinham eleito aquela avenida como o simbolo da
cidade. Cada cidade com o simbolo que merece. Imensos edificios de vidro espelhado disputavam lugar com a favela que, ao contrario do plano original
e todas as tentativas anteriores, nunca tinha sido erradicada e agora
ocupava os espacos que podia. De um certo modo, aquele lugar era a cara de
Sao Paulo; ja fazia algumas decadas que casa terrea era curiosidade
historica. Saci esperava no ponto. Passava um pouco das seis, mas naquela
epoca a hora do rush ja nao existia mais. O transito era o mesmo das cinco
da manha ate mais ou menos as dez da noite. Entre os microcarros coreanos, carroceiros transportando a feria de papelao do dia. Ali na frente, uma charrete puxada por um pangare fechava uma faixa de transito inteira. O
bicho tinha empacado e estava sendo chicoteado impiedosamente, sob buzinas
e xingamentos dos motoristas. Saci conseguiu embarcar no quarto onibus
certo que passou. A galera tava pouco se lixando se ele usava muleta ou
nao. Ninguem nunca lhe cedia a vez. Ate a Vila Joaniza II, onde morava,
eram tres conducoes. Ao lado do cobrador, um cara brincava com um Game Boy
VR. Parecia um imbecil, apalpando o ar. Quase tomou um tapa quando, sem
querer, passou a mao na bunda de um negao que viajava de pe. Muitos passageiros, de microHDTV na mao, assistiam o teipe do jogo do Corinthians
(0x0 com o Fluminense). Saci ficou assistindo por cima do ombro de um cara
e o tempo ate que passou rapido.
- o Saci! Chega mais. Escuta aqui, cara, o que e que voce andou armando
com a sua tia? Esse negocio de exu fudeu com a minha base de dados. Isso
nao fica assim nao!
Quando Saci chegou a Vila Joaniza II, ja estava escuro. Do lugar onde ele descia do onibus ate a sua casa eram oito quarteiroes a pe. A rua era de
terra; nao havia calcada. As casas por ali eram uma mistura de barracos com casinhas de alveraria. Dos postes pendia um emaranhado incrivel de fiacao;
a maioria daquilo era fibra otica. As antenas nos telhados formavam uma verdadeira floresta. Aqui e ali, emissores de microondas. Na rua, a
molecada improvisava uma pelada com uma bola meio murcha. Quem estava
esperando por Saci no meio do caminho era Wesley, o traficante local. Por
ali todo mundo conhecia Saci e tambem a sua tia, a Mae Jurema, que tinha um terreiro de umbanda na regiao. Quando Wesley viu o computador onde estavam cadastrados seus clientes travar daquele jeito, sabia de quem suspeitar.
Esperava por ele encostado na porta de um bar. Ali por perto, tres de seus "associados" nem faziam muita forca pra ocultar as Uzis por baixo de
jaquetas estampadas com logos de times da NBA. Saci explicou cuidadosamente
que nao tinha nada a ver com aquilo, e que o mesmo havia inclusive
acontecido na firma onde ele trabalhava. Wesley nao acreditou muito, mas
como era Saci quem resolvia todos os paus do seu sistema e mantinha a coisa funcionando, nao havia muita saida. Recomendou a Saci que "ficasse ligado"; Saci prometeu dar uma geral no seu OS no dia seguinte e deu o fora. Aquela historia estava ficando muito, muito esquisita. Definitivamente nao era uma brincadeira do pessoal da tecnica do seu escritorio; ele precisava dar uma olhada naquilo. E sabia quem poderia dar uma forca com essas coisas de exu.
Por sorte o terreiro da tia Jurema nao era muito fora do caminho da sua casa.
- Menino, a gente tava te procurando! Sabe o que...
- E, eu sei, eu sei. Foi o Exu Tranca Rede, ne?
Keyla tinha corrido pra encontrar Saci no meio da rua. Era uma mulata
muito bonita que ajudava Mae Jurema a manter tudo em ordem e operava o computador do terreiro. Naturalmente, estava toda de branco. Estava
preocupada com a possibilidade de ter perdido o cadastro das entidades que baixavam no terreiro. Saci nao perdeu tempo, foi direto falar com a tia.
Jurema era cega, e o seu lugar favorito era num canto, num sofa detonado.
Ficava de olhos semicerrados e nao parava de murmurar e resmungar coisas baixinho para si mesma. Como era velha e muito gorda, raramente levantava
dali. Keyla cuidava para que todas as suas ordens fossem executadas e lhe trazia as refeicoes. Para muitos, Mae Jurema estava simplesmente gaga, mas
quem tivesse um pouco de paciencia geralmente se convencia do contrario.
Assim que Saci chegou, ela o chamou para perto com gesto. Nem o deixou
falar nada.
- Meu fio, to sabendo, me contaram. E Exu que atravessou, ne? As coisa tao parada, nao flui. Conheco bem. =CA! Voces acha que essas coisa de computador
e novidade, e nada. E tudo igual, conheco bem. As coisa de cima sao igual
as de baixo e e Exu que faz a ligacao. Ele e que abre os caminho, liga os outros mundo com o nosso. =CA! Voces acha que essas coisa de computador nao
tem caminho, mas e tudo igual. As rua do computador, as encruzilhada, ta
tudo ai nessas rede e e Exu quem rege, ele sim. Mas as pessoa nao tem
respeito, e agora Exu ta contrariado. =CA! Conheco bem. Tem que ter respeito. Vamo falar com ele; vamo despachar. Por oferenda, por ebo, ai ele acerta as coisas e faz fluir o que ta bloqueado. E Exu quem tem o poder pra fazer
isso. =CA!
Saci nao ficou muito convencido, mas de qualquer modo seria legal ver o
que dava pra fazer no sistema da tia Jurema. Era quase tao bom como o seu,
e ele nunca se separava do floptical onde guardava os seus utilitarios. A
mesa onde ficava o computador foi mudada para perto da porta do terreiro,
onde fica a Casa de Exu. Enquanto Saci restartava o sistema com um OS alternativo, o terreiro era preparado.
Embarabo, ago, mojuba.
Embarabo, ago mojuba
Omode co eko,
Embarabo, ago mojuba.
O quadro era, no minimo, curioso. No centro de tudo, Saci operava um computador sem a tampa, todo remendado com silvertape. A unica luz vinha do monitor, uma velha matriz de cristal liquido, e de dezenas de velas
brancas. Nos lados do computador e do monitor haviam sido riscados pontos
com pemba vermelha. A mesa, coberta por um pano vermelho com sinais
brancos. Em volta, as oferendas: Marafa, cidra e vinho branco em pequenas cumbucas de barro; panelas com farinha de mandioca, mel e dende; charutos acesos. Muitas folhas de erva espada e folhas de manga. Essencias de mirra, rosa e sumo de arruda tornavam o ar dificil de respirar. Pessoas de branco tocavam, em atabaques, o ponto do exu; cantavam e dancavam sincopadamente.
Exu Ona,
Exu Lona,
Mo gi re lo de
Elegbara,
Legbara, ie ie
Exu Ona, ke wa o!
Saci logo percebeu que combater o virus diretamente dava pouco resultado.
A melhor estrategia seria criar um programinha que funcionasse como
"oferenda", quase uma isca. Algo que atraisse o virus, satisfazendo os seus requerimentos, e desse modo o neutralizasse. Nao foi nada facil. O ritual
durou ate o nascer do sol; algumas pessoas entravam em transe, outras caiam
no chao, extenuadas. Saci, alheio a tudo, batia rapidamente no teclado e,
vez ou outra, dava ordens secas para o reconhecedor de voz. Tinha que
preparar o anti-virus com os seus programas dando pau e desligando-se inesperadamente, acusando "Este programa executou uma instrucao ilegal e
sera finalizado". Passava das seis da manha, e o batuque ja havia
enfraquecido bastante, quando a oferenda subitamente foi aceita. Saci rapidamente copiou o codigo basico do virus para um floptical e ejetou. Em poucos segundos, o sistema foi liberado pelo Exu Tranca Rede. A conexao
estava aberta. Obedecendo as suas instrucoes, o anti-virus de Saci comecou
a replicar-se pela rede. Da Vila Joaniza II para o backbone de Diadema, e
dali pros sistemas industriais do ABC. Mas disso Saci nao podia saber, o
seu programa era impossivel de ser tracado. No dia seguinte os boletins
dariam a noticia que o virus Exu Tranca Rede havia sumido tao
misteriosamente quanto havia aparecido.
- Eu nao te disse? Jesus e poder! Satanas nao saia daqui do meu computador
de jeito nenhum, ai eu orei, orei com fe e, de manha, quando eu cheguei, o
demo ja tinha exorcizado. O poder de Jesus conquista tudo!
Saci estava chegando, atrasadissimo, ao trabalho. Estava com olheiras profundas, tinha passado a noite em claro. Fez um sinal com mao para
Damasio, nao estava interessado naquele papo de crente. Nao naquela hora.
Ele teve uma noite realmente dura.
No terreiro da Mao Jurema, escondido num canto do altar, tinha um disco floptical dentro de um pote vazio de maionese. A tampa tinha um cruz
tracada e havia sido lacrada. Ali estava o primeiro cramulhao da era digital.
BARATA ELETRICA, numero 17
Este jornal foi escrito por Derneval R. R. da Cunha.
https://sites.google.com/site/barataeletricafanzine/Home/exut-htm
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